QUALIDADE DE VIDA

Estamos na Era da Raiva?

Como não sentir apreensão diante das tensões do nosso mundo, que dia a dia parece mais cruel e caótico! Somos todos espectadores das catástrofes naturais e das tragédias socioambientais, como a fome, a miséria, as guerras, o terrorismo, o desemprego, a instabilidade econômica e social. Desencanto e ceticismo levam muita gente a questionar sistemas de crenças que prometem bem-estar de todos os tipos. É fácil observar o rancor e o desprezo agenciados por ideologias à direita ou à esquerda. Essa animosidade está reconstruindo muralhas de intolerância. E sabemos que intransigência e desdém atrapalham discussões construtivas, essenciais na busca de soluções para as crises éticas, políticas e econômicas do nosso tempo. Tanta intolerância é sinal de que vivemos na Era de Raiva?

A palavra raiva deriva do latim rabia, termo associado à ira, à fúria e à violência. O debate sobre aspectos negativos e positivos da raiva é antigo, envolve dúvidas sobre a possibilidade e a adequação de reprimir impulsos agressivos, de modo que não causem danos à própria pessoa e aos outros. A raiva é uma das emoções mais intensas e frequentes, presente no dia a dia de todos nós. Comportamentos irritados incluem fortes reações de contrariedade, energizadas por ofensas reais ou imaginárias. Sensações raivosas envolvem a interpretação de uma situação incômoda, mudanças corporais (posturas, fisiologia do estresse) e atuação da irritabilidade. Esses três componentes influenciam um ao outro, aumentando a intensidade das reações exasperadas. Expressões de raiva tendem a ser destemperadas, inflexíveis e cegas – próximas das atitudes fanáticas. Indignação e fúria não são fáceis de dominar, não podem ser “engolidas” pelo ego, tampouco podem ser despejadas sobre os outros. Por isso, fazem parte da categoria “emoção negativa” e, tal como a inveja e a tristeza, costumam ser mal compreendidas. Emoções negativas são modos de expressão da alma, precisam ser admitidas e reconhecidas. Sabemos o que provocou essa hostilidade e o que ela revela da nossa vida psíquica? Brigar nos causa constrangimento, culpa e dor? Essa suscetibilidade pode ser modificada?

O gatilho universal da raiva é sentir-se em perigo. Esse perigo se apresenta como ameaça física direta ou como ameaça simbólica, que fere a autoestima e a dignidade pessoal. Reações raivosas são necessárias para a sobrevivência. Ira é a emoção que impulsiona o ser humano a lutar e a se defender. Ela traz a energia e o vigor essenciais para combater injustiças e abusos. No entanto, é fundamental descobrir como controlar a impulsividade que lhe é inerente, o que nunca é fácil. Raiva frequente demais, intensa demais e duradoura, que leva à violência ou interfere nos relacionamentos de maneira destrutiva é sinal de distúrbio psicológico. É muito importante acolher a própria raiva, avaliar se a intensidade está dentro do razoável e se é possível aplicar essa energia de modo construtivo.

Na clínica psicológica, raiva também é vista como emoção substituta da dor e da angústia. Por exemplo: algumas pessoas ficam zangadas para evitar vivências de medo e impotência. A explosão raivosa costuma promover sensações de poder e de superioridade moral, inibindo a percepção do medo, da culpa, da inadequação e da fragilidade. Justificado ou não, o sedutor sentimento de justiça geralmente é associado à raiva, oferecendo enérgico impulso temporário para a autoestima. Afinal, é melhor se mostrar agressivo do que assumir carências, amarguras e fracassos. Nessa função defensiva, a raiva desperta sensações de poder, bloqueando a angústia inseparável das aflições insuportáveis. Quem sabe, nessa provável Era da Raiva a combinação intolerância-hostilidade seja vista como um elixir mágico, capaz de anestesiar experiências de desonra, medo e dor. Tomara que essa “função anestésica” da raiva jamais cause dependência e vício!

Marisa Moura Verdade é Mestra em Educação Ambiental, Doutora em Psicologia, especializada em Psico-Oncologia. Autora do livro Ecologia Mental da Morte. A troca simbólica da alma com a morte. (Editora Casa do Psicólogo & FAPESP). E-mail: mmverdade@gmail.com